Primeiramente
devemos lembrar que no Bíblia a morte é inexistência (Sal.6:5, 115:17, 146:4, Ecl 3:19-20, 9:4-10). A noção
de uma existência pós-morte ou sem Deus é uma ideia atribuída primeiramente a
serpente (Satanás) em Gên 3:4-5 (ver Gên 2:17 e Apoc 12:9). Em Deut 18:9-14 e
Isa 8:19-20 Deus proíbe qualquer contato com aqueles que consultam aos mortos
(ver Lev 20:6, 27). Mas por que proibir algo que seria impossível? Se o morto
não pode interagir a que se refere essa proibição?
As
proibições de Deut 18 e Isa 8 apenas mencionam a consulta aos mortos com
idolatria e engano mas essas passagens não explicam se o morto era visto ou não
e se sim o que seria esse ser. É no Novo Testamento que isso é explicado. Ensinando aos Coríntios sobre idolatria,
Paulo relacionado os ídolos aos demônios ou inimigos espirituais de Deus (1 Cor
10:19-21). Ele afirma que o próprio Satanás pode agir de maneira enganosa
através de personificações (2 Cor 11:13-15) como ocorreu na tentação de Jesus
(Mat 4:1-11). Assim, nos parece lógico relacionar a aparição de mortos como
vivos aos demônios.
Tendo
isso em mente vamos a uma breve análise do único caso em toda a Bíblia de uma
aparição de um defunto humano como vivo, 1 Samuel 28. O texto deixa claro que
Samuel estava morto (v.3). A narrativa começa com essa observação preparando o
leitor para as incoerências que se seguem. “Samuel estava morto e...” além do
mais “Saul havia expulsado do país os médiuns e os que consultavam os
espíritos.” (v.3). De acordo com a ordem
divina explicitada em Deut 18, os necromantes foram banidos pelo rei de Israel
porque tal prática era abominável (ver 1 Sam 6:2, 15:23). Essa observação deixa
ainda mais claro a incoerência do que se segue, pois o próprio rei que mandara
expulsar os necromantes agora estava a sua procura. E por que?
“Saul
viu o acampamento filisteu e teve medo, ficou apavorado.” (v.5) O medo de Saul
o fez agir de maneira insensata. Anteriormente Deus havia liberto os Israelitas
dos filisteus sem muitos problemas. Davi não tivera medo do gigante Golias. Mas
Saul perdera o senso da proteção divina e por isso o medo. O rei havia perdido
contato com o Senhor Deus de Israel. “Ele consultou o Senhor, mas este não lhe
respondeu nem por sonhos, nem por Urim nem por profetas.” (v.6). Desde o
capítulo 15, quando Saul desobedece a ordem divina pronunciada pelo profeta
Samuel, Deus não se comunica com Saul.
A
sequência narrativa desde 1 Sam 15 enfatiza o contraste entre Saul e Davi e dá
força literarária ao abandono divino ao rei Saul. Em 1 Sam 15 Deus rejeita Saul
(não é à toa que Deus não o respondera no cap. 28). Em seguida (1 Sam 16) Davi é ungido por
Samuel enquanto isso Saul é possuído por um espírito mal (v.23; ver 18:12).
Saul então começa a perseguir Davi e em certa ocassião o espírito do Senhor se
apodera dos homens de Saul os inibindo de matar Davi (1 Sam 19:20). Saul
continua com o espírito do mal e vai a loucura ordenando a matança de toda uma
cidade de sacerdotes por vingança ao tratamento com Davi, que havia consultado
ao Senhor via o sacerdote (1 Sam 22). Essa narrativa se torna significativa
porque em 1 Samuel 28 é informado que esse privilégio é negado a Saul. O
contraste entre Davi e Saul se dá também em atitudes. Davi mesmo tendo
oportunidade e apoio não assassina o seu inimigo Saul (1 Sam 25 e 26). Ao
leitor chegar em 1 Samuel 28 a narrativa deixa claro que Deus não mais está do
lado de Saul e sim de Davi. Por que então Deus falaria com Saul?
Em
1 Samuel 28 chegamos ao ápice do afastamento de Saul do espírito do Senhor.
Deus não responde sua consulta (v.6). Disfarçado, à noite, o rei então em desespero
procura uma alternativa aos caminhos de Deus (v.8). Saul mente e se esconde,
semelhante a atitude de Adão e Eva no Éden (Gên 3). A ironia nisso é que apesar dele se esconder
e mentir, a própria necromante o reconhece e fala a verdade (v.9, 12). Além
disso, o próprio ser que aparece a Saul afirma que Deus o havia abandonado
(v.16).
Então
se o ser que aparece não era do Senhor Deus, quem seria?
No
v.13 a médium afirma avistar um Elohim (Heb. deus[es]) vindo da terra.
Essa descrição é enigmática primeiro porque o Deus de Israel normalmente
aparece do céu. Devemos lembrar que a palavra Elohim é usada para
descrever qualquer ser superior (líderes, deuses, Deus – ver aula Teísmo na
Antiguidade). Perceba que ela não afirma ter visto Samuel, mas apenas um elohim,
um ancião vestindo um manto (v.14). E baseado nessa descrição Saul achou/percebeu
que era Samuel (Heb. yada).
A
partir desse reconhecimento a narrativa então usa “Samuel” para descrever o ser
com quem Saul conversa (v.15). Se então o morto “Samuel” não vem do Senhor, e
usando a explicação Paulina, era um demônio, o curioso nessa passagem é que a
sua fala foi verdadeira mas negativa. “Samuel” profetiza que Saul e o exército
Israelita seriam destruídos pelos Filisteus. Isso é cumprido cabalmente no
final do livro (1 Samuel 31). Pode então um demônio falar a verdade e agir como
um profeta? Parece que sim.
Em
Gên 3, a serpente fala a verdade em afirmar que os olhos de Eva se abririam e que
ela conheceria o bem e o mal. Para Jesus, Satanás cita textos da bíblia,
certamente verdadeiros. A sutileza do engano não é a completa falta de verdade,
mas a mixtura com o erro e as intenções que geram morte. Ninguém se engana com
uma nota falsa de 3 reais porque ela não existe. Falsificação tem como base o
verdadeiro. Nos parec e que o engano de
“Samuel” foi reproduzir fielmente o profeta do Senhor fazendo com que o rei
Saul aceitasse sua própria teoria do engano. E junto com sua mensagem contendo
verdades, “Samuel” aumenta o medo de Saul e faz com que ele perca a batalha
para os filisteus (1 Sam 31). Enquanto isso, Davi é vitorioso por ser obediente
ao Senhor (1 Sam 30).