Thursday, July 13, 2017

Se o ser humano após a morte não age, quem “subiu” ou apareceu a Saul em I Sam 28?

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Primeiramente devemos lembrar que no Bíblia a morte é inexistência (Sal.6:5, 115:17, 146:4, Ecl 3:19-20, 9:4-10). A noção de uma existência pós-morte ou sem Deus é uma ideia atribuída primeiramente a serpente (Satanás) em Gên 3:4-5 (ver Gên 2:17 e Apoc 12:9). Em Deut 18:9-14 e Isa 8:19-20 Deus proíbe qualquer contato com aqueles que consultam aos mortos (ver Lev 20:6, 27). Mas por que proibir algo que seria impossível? Se o morto não pode interagir a que se refere essa proibição?

As proibições de Deut 18 e Isa 8 apenas mencionam a consulta aos mortos com idolatria e engano mas essas passagens não explicam se o morto era visto ou não e se sim o que seria esse ser. É no Novo Testamento que isso é explicado.  Ensinando aos Coríntios sobre idolatria, Paulo relacionado os ídolos aos demônios ou inimigos espirituais de Deus (1 Cor 10:19-21). Ele afirma que o próprio Satanás pode agir de maneira enganosa através de personificações (2 Cor 11:13-15) como ocorreu na tentação de Jesus (Mat 4:1-11). Assim, nos parece lógico relacionar a aparição de mortos como vivos aos demônios.

Tendo isso em mente vamos a uma breve análise do único caso em toda a Bíblia de uma aparição de um defunto humano como vivo, 1 Samuel 28. O texto deixa claro que Samuel estava morto (v.3). A narrativa começa com essa observação preparando o leitor para as incoerências que se seguem. “Samuel estava morto e...” além do mais “Saul havia expulsado do país os médiuns e os que consultavam os espíritos.” (v.3).  De acordo com a ordem divina explicitada em Deut 18, os necromantes foram banidos pelo rei de Israel porque tal prática era abominável (ver 1 Sam 6:2, 15:23). Essa observação deixa ainda mais claro a incoerência do que se segue, pois o próprio rei que mandara expulsar os necromantes agora estava a sua procura. E por que?

“Saul viu o acampamento filisteu e teve medo, ficou apavorado.” (v.5) O medo de Saul o fez agir de maneira insensata. Anteriormente Deus havia liberto os Israelitas dos filisteus sem muitos problemas. Davi não tivera medo do gigante Golias. Mas Saul perdera o senso da proteção divina e por isso o medo. O rei havia perdido contato com o Senhor Deus de Israel. “Ele consultou o Senhor, mas este não lhe respondeu nem por sonhos, nem por Urim nem por profetas.” (v.6). Desde o capítulo 15, quando Saul desobedece a ordem divina pronunciada pelo profeta Samuel, Deus não se comunica com Saul.

A sequência narrativa desde 1 Sam 15 enfatiza o contraste entre Saul e Davi e dá força literarária ao abandono divino ao rei Saul. Em 1 Sam 15 Deus rejeita Saul (não é à toa que Deus não o respondera no cap. 28).  Em seguida (1 Sam 16) Davi é ungido por Samuel enquanto isso Saul é possuído por um espírito mal (v.23; ver 18:12). Saul então começa a perseguir Davi e em certa ocassião o espírito do Senhor se apodera dos homens de Saul os inibindo de matar Davi (1 Sam 19:20). Saul continua com o espírito do mal e vai a loucura ordenando a matança de toda uma cidade de sacerdotes por vingança ao tratamento com Davi, que havia consultado ao Senhor via o sacerdote (1 Sam 22). Essa narrativa se torna significativa porque em 1 Samuel 28 é informado que esse privilégio é negado a Saul. O contraste entre Davi e Saul se dá também em atitudes. Davi mesmo tendo oportunidade e apoio não assassina o seu inimigo Saul (1 Sam 25 e 26). Ao leitor chegar em 1 Samuel 28 a narrativa deixa claro que Deus não mais está do lado de Saul e sim de Davi. Por que então Deus falaria com Saul?

Em 1 Samuel 28 chegamos ao ápice do afastamento de Saul do espírito do Senhor. Deus não responde sua consulta (v.6). Disfarçado, à noite, o rei então em desespero procura uma alternativa aos caminhos de Deus (v.8). Saul mente e se esconde, semelhante a atitude de Adão e Eva no Éden (Gên 3).  A ironia nisso é que apesar dele se esconder e mentir, a própria necromante o reconhece e fala a verdade (v.9, 12). Além disso, o próprio ser que aparece a Saul afirma que Deus o havia abandonado (v.16). 
Então se o ser que aparece não era do Senhor Deus, quem seria?

No v.13 a médium afirma avistar um Elohim (Heb. deus[es]) vindo da terra. Essa descrição é enigmática primeiro porque o Deus de Israel normalmente aparece do céu. Devemos lembrar que a palavra Elohim é usada para descrever qualquer ser superior (líderes, deuses, Deus – ver aula Teísmo na Antiguidade). Perceba que ela não afirma ter visto Samuel, mas apenas um elohim, um ancião vestindo um manto (v.14). E baseado nessa descrição Saul achou/percebeu que era Samuel (Heb. yada).

A partir desse reconhecimento a narrativa então usa “Samuel” para descrever o ser com quem Saul conversa (v.15). Se então o morto “Samuel” não vem do Senhor, e usando a explicação Paulina, era um demônio, o curioso nessa passagem é que a sua fala foi verdadeira mas negativa. “Samuel” profetiza que Saul e o exército Israelita seriam destruídos pelos Filisteus. Isso é cumprido cabalmente no final do livro (1 Samuel 31). Pode então um demônio falar a verdade e agir como um profeta? Parece que sim.


Em Gên 3, a serpente fala a verdade em afirmar que os olhos de Eva se abririam e que ela conheceria o bem e o mal. Para Jesus, Satanás cita textos da bíblia, certamente verdadeiros. A sutileza do engano não é a completa falta de verdade, mas a mixtura com o erro e as intenções que geram morte. Ninguém se engana com uma nota falsa de 3 reais porque ela não existe. Falsificação tem como base o verdadeiro.  Nos parec e que o engano de “Samuel” foi reproduzir fielmente o profeta do Senhor fazendo com que o rei Saul aceitasse sua própria teoria do engano. E junto com sua mensagem contendo verdades, “Samuel” aumenta o medo de Saul e faz com que ele perca a batalha para os filisteus (1 Sam 31). Enquanto isso, Davi é vitorioso por ser obediente ao Senhor (1 Sam 30).

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