Friday, July 3, 2020

Aplicações de topônimos bíblicos

É legítimo fornecer aplicações alternativas de lugares bíblicos. Por exemplo, os Cristãos dão uma aplicação alternativa de "Israel" como a igreja Cristã (crentes messiânicos). Se assim for, qual será o significado para o “Egito”, “Tiro”, “Nínive”, “Efraim”, “Judá” (Israel moderno?)? Você tem uma opinião sobre isso?


Essa pergunta aborda duas suposições que alguém pode ter ao ler a Bíblia. Ambas estão intimamente ligadas, como explicarei. O primeiro é baseado na sua palavra "aplicação". Crentes Cristãos e Judeus pensam que a Bíblia é a palavra de Deus e, portanto, suas palavras são eternamente verdadeira. Assim, quando Deus falou aos Israelitas que deixaram o Egito, acredita-se que Deus realmente falou à toda humanidade, ou pelo menos à todos aqueles que se consideram povo de Deus (Israel). Essa ideia já está se encontra em Deuteronômio 5:3, quando Moisés diz à segunda geração de Israelitas que Deus falou à eles no mt. Sinai, quando historicamente não era esse o caso. “Não com nossos pais o Senhor fez esse pacto, mas conosco, que hoje estamos todos vivos.“ Os profetas ecoam esse entendimento de que os ensinamentos de Deus aos Israelitas que deixaram o Egito (a Torá de Moisés) ainda eram válidos para eles que viveram séculos depois. Os autores do Novo Testamento também adotam essa visão (por exemplo, 1 Cor 10: 1-11; Hebreus 4: 1-2), como todos os crentes Judeus e Cristãos.

Como o texto bíblico é antigo, condicionado pelo espaço e pelo tempo, é imperativo transpor o significado antigo para o presente. Assumindo essa perspectiva, o texto pode dizer X, mas na verdade pode significar A, B ou C, dependendo não apenas do contexto original do autor, mas do leitor. Nesta dinâmica complexa do relacionamento textual, as referências geográficas também são transpostas. É uma mudança de espaço para um lugar. Um lugar é um espaço ideal, construído por seres humanos, não natural. Ambos (lugar e espaço) são reais, mas suas realidades são baseadas em fundamentos ontológicos distintos.

Tomemos por exemplo Jerusalém. Na sua dimensão espacial, é o nome de uma cidade localizada nas montanhas a oeste do Mar Morto e a leste do Mar Mediterrâneo. Na Bíblia Hebraica, quando Salomão constrói o Templo lá, torna-se o lugar onde Deus habita. Jerusalém a partir de então está relacionada à idéia - lugar de Deus. Como o trono de Deus está no céu (1 Rs 8), escritores judeus posteriores se referirão a Jerusalém do céu e da terra (Ap 21: 1-2; Bab. Talmud Ta'anit 5a). Supondo que Deus estivesse presente na igreja, alguns cristãos interpretaram Jerusalém e, finalmente, Israel como a congregação cristã, e a igreja como o santuário. Essa transferência de significado é puramente ideológica e não tem raízes na fisicalidade do espaço original das Escrituras.

Essa transferência de topônimos para a esfera de idaias avança quando os lugares foram identificados com comportamento e grupos de pessoas. Esse entendimento ético, em parte, se baseia na suposição de que o mundo está dividido em dois grupos de pessoas, boas e más. Tomemos, por exemplo, o Egito. Na Torá, esse país Africano é o espaço que serve de refúgio para Abrão e Jacó em tempos de fome. Mas também se tornou um lugar de abuso quando os Israelitas foram oprimidos pelo Faraó e seu governo. Como a leitura ética das Escrituras tende a ter uma visão míope ou atomística da realidade, o que é enfatizado por escritores posteriores é o caráter opressivo do Egito, não o hospitaleiro. A fuga do Egito (Êxodo) tornou-se paradigmática para autores posteriores que se referem a novos casos de opressão como um retorno ao Egito. Isaías aplica essa noção à invasão Assíria da terra de Israel (Is 10: 24-26; 11:16; 52: 4) e o livro do Apocalipse vê no Egito, como Babilônia, o futuro inimigo do povo de Deus (Ap 10). 16-17), embora não houvesse Babilônia como cidade real atacando o povo de Deus no primeiro século da era comum. Por sua vez, a Babilônia do Apocalipse foi interpretado por muitos Cristãos como como representando os poderes políticos que perseguiam os Cristãos, como o Império Romano, os Muçulmanos, ou até outro Cristãos que discordavam dos perseguidos.

Essa leitura ética e dicotômica das Escrituras é evidente na maneira como os autores dos Manuscritos do Mar Morto interpretaram algumas profecias. Em um comentário sobre Nahum, a queda de Nínive é entendida como a destruição de um grupo de Judeus (Fariseus). No mesmo comentário sobre Nahum, Efraim é identificado como aqueles que falam falsamente, e aplicado aos Israelitas atuais que aos olhos do autor estavam ensinando falsidades. Esses Judeus são identificados como tais porque se opunham às interpretações da tradição da comunidade do autor dos pesharim (comentário), que se viam como os verdadeiros seguidores de Deus, portanto os Israelitas. Essa identificação de Israel como bom e seus inimigos bíblicos como os maus, é a suposição central dessa reaplicação topográfica das Escrituras. A lógica é simples. Como Israel é o povo de Deus, lugares antagônicos a Israel em sua história são entendidos de uma perspectiva ética. Para os leitores que seguem essas suposições, basicamente todos os topônimos das Escrituras são reinterpretados (por exemplo, Tiro, Ezequiel 28; 12 Tribos de Israel, Ap 7).

Como historiador, o que procuro quando me deparo com tais interpretações é saber quais são as características do grupo bom e do grupo ruim em discussão. A partir daí, percebo que o resto é apenas uma questão de combinar os inimigos do autor com os mocinhos e bandidos bíblicos.

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