Essa pergunta aborda duas suposições que alguém pode ter ao
ler a Bíblia. Ambas estão intimamente ligadas, como explicarei. O primeiro é
baseado na sua palavra "aplicação". Crentes Cristãos e Judeus pensam
que a Bíblia é a palavra de Deus e, portanto, suas palavras são eternamente
verdadeira. Assim, quando Deus falou aos Israelitas que deixaram o Egito,
acredita-se que Deus realmente falou à toda humanidade, ou pelo menos à todos
aqueles que se consideram povo de Deus (Israel). Essa ideia já está se encontra
em Deuteronômio 5:3, quando Moisés diz à segunda geração de Israelitas que Deus
falou à eles no mt. Sinai, quando historicamente não era esse o caso. “Não com
nossos pais o Senhor fez esse pacto, mas conosco, que hoje estamos todos
vivos.“ Os profetas ecoam esse entendimento de que os ensinamentos de Deus aos
Israelitas que deixaram o Egito (a Torá de Moisés) ainda eram válidos para eles
que viveram séculos depois. Os autores do Novo Testamento também adotam essa
visão (por exemplo, 1 Cor 10: 1-11; Hebreus 4: 1-2), como todos os crentes Judeus
e Cristãos.
Como o texto bíblico é antigo, condicionado pelo espaço e pelo tempo, é
imperativo transpor o significado antigo para o presente. Assumindo essa
perspectiva, o texto pode dizer X, mas na verdade pode significar A, B ou C,
dependendo não apenas do contexto original do autor, mas do leitor. Nesta
dinâmica complexa do relacionamento textual, as referências geográficas também
são transpostas. É uma mudança de espaço para um lugar. Um lugar é um espaço
ideal, construído por seres humanos, não natural. Ambos (lugar e espaço) são
reais, mas suas realidades são baseadas em fundamentos ontológicos distintos.
Tomemos por exemplo Jerusalém. Na sua dimensão espacial, é o nome de uma
cidade localizada nas montanhas a oeste do Mar Morto e a leste do Mar Mediterrâneo.
Na Bíblia Hebraica, quando Salomão constrói o Templo lá, torna-se o lugar onde
Deus habita. Jerusalém a partir de então está relacionada à idéia - lugar de
Deus. Como o trono de Deus está no céu (1 Rs 8), escritores judeus posteriores
se referirão a Jerusalém do céu e da terra (Ap 21: 1-2; Bab. Talmud Ta'anit
5a). Supondo que Deus estivesse presente na igreja, alguns cristãos
interpretaram Jerusalém e, finalmente, Israel como a congregação cristã, e a
igreja como o santuário. Essa transferência de significado é puramente
ideológica e não tem raízes na fisicalidade do espaço original das Escrituras.
Essa transferência de topônimos para a esfera de idaias avança quando os
lugares foram identificados com comportamento e grupos de pessoas. Esse
entendimento ético, em parte, se baseia na suposição de que o mundo está
dividido em dois grupos de pessoas, boas e más. Tomemos, por exemplo, o Egito.
Na Torá, esse país Africano é o espaço que serve de refúgio para Abrão e Jacó
em tempos de fome. Mas também se tornou um lugar de abuso quando os Israelitas
foram oprimidos pelo Faraó e seu governo. Como a leitura ética das Escrituras
tende a ter uma visão míope ou atomística da realidade, o que é enfatizado por
escritores posteriores é o caráter opressivo do Egito, não o hospitaleiro. A
fuga do Egito (Êxodo) tornou-se paradigmática para autores posteriores que se
referem a novos casos de opressão como um retorno ao Egito. Isaías aplica essa
noção à invasão Assíria da terra de Israel (Is 10: 24-26; 11:16; 52: 4) e o livro
do Apocalipse vê no Egito, como Babilônia, o futuro inimigo do povo de Deus (Ap
10). 16-17), embora não houvesse Babilônia como cidade real atacando o povo de
Deus no primeiro século da era comum. Por sua vez, a Babilônia do Apocalipse foi
interpretado por muitos Cristãos como como representando os poderes políticos
que perseguiam os Cristãos, como o Império Romano, os Muçulmanos, ou até outro
Cristãos que discordavam dos perseguidos.
Essa leitura ética e dicotômica das Escrituras é evidente na maneira
como os autores dos Manuscritos do Mar Morto interpretaram algumas profecias.
Em um comentário sobre Nahum, a queda de Nínive é entendida como a destruição
de um grupo de Judeus (Fariseus). No mesmo comentário sobre Nahum, Efraim é
identificado como aqueles que falam falsamente, e aplicado aos Israelitas
atuais que aos olhos do autor estavam ensinando falsidades. Esses Judeus são
identificados como tais porque se opunham às interpretações da tradição da
comunidade do autor dos pesharim (comentário), que se viam como os verdadeiros
seguidores de Deus, portanto os Israelitas. Essa identificação de Israel como
bom e seus inimigos bíblicos como os maus, é a suposição central dessa
reaplicação topográfica das Escrituras. A lógica é simples. Como Israel é o
povo de Deus, lugares antagônicos a Israel em sua história são entendidos de
uma perspectiva ética. Para os leitores que seguem essas suposições,
basicamente todos os topônimos das Escrituras são reinterpretados (por exemplo,
Tiro, Ezequiel 28; 12 Tribos de Israel, Ap 7).
Como historiador, o que procuro quando me deparo com tais interpretações
é saber quais são as características do grupo bom e do grupo ruim em discussão.
A partir daí, percebo que o resto é apenas uma questão de combinar os inimigos
do autor com os mocinhos e bandidos bíblicos.
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